Quando os ratinhos, que têm naturalmente muito medo dos felinos, têm cistos no cérebro devido a uma infecção crónica pelo parasita Toxoplasma gondii, começam a andar mais depressa e durante mais tempo... e o medo de serem caçados diminui. Este autêntico jogo do gato e do rato virado do avesso – e cujos cordelinhos são literalmente puxados por um microorganismo – foi agora revelado por Cristina Afonso e Vítor Paixão, da Fundação Champalimaud, e foi nesta quarta-feira à noite publicado online na revista de livre acesso PLoS ONE.
O Toxoplasma é um protozoário capaz de infectar todos os mamíferos, mas cujo hospedeiro final são os felinos, onde se reproduz de forma sexuada (nos roedores, hospedeiros intermédios, reproduz-se por clonagem). Ora, se os ratinhos se tornarem mais aventureiros, os gatos apanham-nos mais facilmente, aumentando as chances de o parasita conseguir infectar o seu hospedeiro final.
A infecção no ratinho começa com uma fase aguda, durante a qual o animal perde muito peso, e a seguir torna-se crónica, com o parasita a formar pequenas bolsas, ou cistos, cerebrais. Já se suspeitava que, estando alojado no cérebro, o parasita pudesse induzir alterações comportamentais nos roedores. Por exemplo, observações de laboratório sugeriam que os ratinhos infectados, em vez de fugirem a sete pés do cheiro a gato, se tornavam indiferentes a ele e até podiam achá-lo “interessante” porque activava áreas cerebrais associadas, como o prazer sexual. “Como se pensassem, ‘espera lá, isto não é um predador, é uma fêmea!’”, diz-nos Cristina Afonso em conversa telefónica.
Mas por outro lado, em várias quintas do Reino Unido, constatou-se há uns anos que a maioria dos ratinhos apanhados em armadilhas estavam infectados pelo Toxoplasma. Isto levou os investigadores portugueses a perguntarem-se se o parasita não produziria também outras alterações comportamentais, nomeadamente da forma como os ratinhos exploravam o ambiente e avaliavam os riscos. “Uma armadilha não é um predador”, diz Cristina Afonso, “e quisemos saber se não haveria também alterações comportamentais que não tivessem a ver com predadores”.
Os cientistas decidiram então medir, no laboratório, as características dos movimentos de exploração realizados por ratinhos com toxoplasmose crónica, ou seja com cistos cerebrais. Colocaram os animais numa grande caixa e deixaram-nos explorá-la livremente, medindo a velocidade, a distância percorrida, vendo se permaneciam mais tempo na zona central, mais exposta, ou na periferia da caixa, mais resguardada. Num segundo tipo de experiências, puseram os animais numa estrutura em forma de cruz, colocada a uma certa altura e que tinha as extremidades de dois dos seus braços abertas (para o “precipício”, por assim dizer) e as dos outros dois fechadas. A ideia neste caso era determinar como os ratinhos avaliavam o “risco ambiental”, uma medida do seu nível de medo – ou da falta dele. “Normalmente, os ratinhos receiam espaços abertos e alturas”, salienta Cristina Afonso. “Mas os ratinhos infectados passavam bastante mais tempo nos braços abertos [da cruz], não se importavam de ir mesmo até à beirinha e quase que saltavam. Estavam relaxadíssimos.”
Os vídeos registados durante as experiências foram analisados automaticamente por computador e a seguir, uma análise estatística confirmou de facto alterações em dois tipos de comportamentos: na forma como os ratinhos organizavam o seu movimento e na sua temeridade. “Andavam mais depressa e durante mais tempo”, explica ainda a cientista. “Normalmente, os ratinhos mexem-se e param, mexem-se e param – mas estes não paravam. Um animal que é uma presa mexe-se com cautela, mas estes quase que pareciam kamikazes, não paravam de se expor ao perigo.”
E agora “a pergunta que vale um milhão de dólares”, diz Cristina Afonso: haverá uma relação entre as áreas do cérebro onde há cistos e o comportamento alterado? Os cientistas analisaram a distribuição dos cistos no cérebro dos animais e descobriram algo de totalmente inédito: que, apesar de os cistos estarem espalhados por todo o cérebro, a sua distribuição não era aleatória. Uma nova análise estatística mostrou que, no cérebro dos animais mais aventureiros, os cistos parecem estar distribuídos por várias áreas que comunicam entre si, o que os leva a pensar que o parasita poderá agir, não sobre uma região cerebral específica, mas antes sobre um circuito cerebral que comanda esse comportamento de risco.
Aqui, Cristina Afonso faz uma pausa para lembrar que “o parasita não tem vontade própria nenhuma!”, alertando para a nossa tendência a humanizar tudo. “O que pensamos que aconteceu é que, ao longo da evolução, foram seleccionados os parasitas que melhor conseguiam alterar o comportamento dos roedores e que, portanto, melhor conseguiam reproduzir-se no gato.” Não resistimos a perguntar: e os seres humanos? O nosso comportamento também poderá ser “manipulado” por parasitas? “Existem correlações [da toxoplasmose] com a esquizofrenia”, responde-nos. E também com acidentes de viação ou as taxas de suicídio. Isto poderá corresponder ao mesmo tipo de alteração do comportamento de risco observado nos ratinhos, mas é apenas uma especulação. E mesmo os resultados agora publicados, obtidos em animais de laboratório, precisam de ser confirmados em condições mais naturais, salienta.
Mais: até é possível que as alterações comportamentais produzidas pelo contacto com microorganismos potencialmente patogénicos sejam em muitos casos benéficos, como sugere ainda um outro resultado, muito surpreendente, obtido pelos cientistas. Quando analisaram o comportamento de ratinhos que, apesar de terem sido infectados pelo Toxoplasma, não tinham desenvolvido qualquer sintoma de doença e não tinham cistos no cérebro, descobriram que esses animais também apresentavam alterações comportamentais – só que em sentido totalmente oposto! “Tinham-se tornado hiper-cautelosos”, diz Cristina Afonso. A equipa tenciona agora “descascar o mecanismo de manipulação do comportamento dos ratinhos pelo Toxoplasma. O que é que o parasita faz?”, interroga-se a cientista. “E quais são as respostas do cérebro?”
Fonte: Público
O Toxoplasma é um protozoário capaz de infectar todos os mamíferos, mas cujo hospedeiro final são os felinos, onde se reproduz de forma sexuada (nos roedores, hospedeiros intermédios, reproduz-se por clonagem). Ora, se os ratinhos se tornarem mais aventureiros, os gatos apanham-nos mais facilmente, aumentando as chances de o parasita conseguir infectar o seu hospedeiro final.
A infecção no ratinho começa com uma fase aguda, durante a qual o animal perde muito peso, e a seguir torna-se crónica, com o parasita a formar pequenas bolsas, ou cistos, cerebrais. Já se suspeitava que, estando alojado no cérebro, o parasita pudesse induzir alterações comportamentais nos roedores. Por exemplo, observações de laboratório sugeriam que os ratinhos infectados, em vez de fugirem a sete pés do cheiro a gato, se tornavam indiferentes a ele e até podiam achá-lo “interessante” porque activava áreas cerebrais associadas, como o prazer sexual. “Como se pensassem, ‘espera lá, isto não é um predador, é uma fêmea!’”, diz-nos Cristina Afonso em conversa telefónica.
Mas por outro lado, em várias quintas do Reino Unido, constatou-se há uns anos que a maioria dos ratinhos apanhados em armadilhas estavam infectados pelo Toxoplasma. Isto levou os investigadores portugueses a perguntarem-se se o parasita não produziria também outras alterações comportamentais, nomeadamente da forma como os ratinhos exploravam o ambiente e avaliavam os riscos. “Uma armadilha não é um predador”, diz Cristina Afonso, “e quisemos saber se não haveria também alterações comportamentais que não tivessem a ver com predadores”.
Os cientistas decidiram então medir, no laboratório, as características dos movimentos de exploração realizados por ratinhos com toxoplasmose crónica, ou seja com cistos cerebrais. Colocaram os animais numa grande caixa e deixaram-nos explorá-la livremente, medindo a velocidade, a distância percorrida, vendo se permaneciam mais tempo na zona central, mais exposta, ou na periferia da caixa, mais resguardada. Num segundo tipo de experiências, puseram os animais numa estrutura em forma de cruz, colocada a uma certa altura e que tinha as extremidades de dois dos seus braços abertas (para o “precipício”, por assim dizer) e as dos outros dois fechadas. A ideia neste caso era determinar como os ratinhos avaliavam o “risco ambiental”, uma medida do seu nível de medo – ou da falta dele. “Normalmente, os ratinhos receiam espaços abertos e alturas”, salienta Cristina Afonso. “Mas os ratinhos infectados passavam bastante mais tempo nos braços abertos [da cruz], não se importavam de ir mesmo até à beirinha e quase que saltavam. Estavam relaxadíssimos.”
Os vídeos registados durante as experiências foram analisados automaticamente por computador e a seguir, uma análise estatística confirmou de facto alterações em dois tipos de comportamentos: na forma como os ratinhos organizavam o seu movimento e na sua temeridade. “Andavam mais depressa e durante mais tempo”, explica ainda a cientista. “Normalmente, os ratinhos mexem-se e param, mexem-se e param – mas estes não paravam. Um animal que é uma presa mexe-se com cautela, mas estes quase que pareciam kamikazes, não paravam de se expor ao perigo.”
E agora “a pergunta que vale um milhão de dólares”, diz Cristina Afonso: haverá uma relação entre as áreas do cérebro onde há cistos e o comportamento alterado? Os cientistas analisaram a distribuição dos cistos no cérebro dos animais e descobriram algo de totalmente inédito: que, apesar de os cistos estarem espalhados por todo o cérebro, a sua distribuição não era aleatória. Uma nova análise estatística mostrou que, no cérebro dos animais mais aventureiros, os cistos parecem estar distribuídos por várias áreas que comunicam entre si, o que os leva a pensar que o parasita poderá agir, não sobre uma região cerebral específica, mas antes sobre um circuito cerebral que comanda esse comportamento de risco.
Aqui, Cristina Afonso faz uma pausa para lembrar que “o parasita não tem vontade própria nenhuma!”, alertando para a nossa tendência a humanizar tudo. “O que pensamos que aconteceu é que, ao longo da evolução, foram seleccionados os parasitas que melhor conseguiam alterar o comportamento dos roedores e que, portanto, melhor conseguiam reproduzir-se no gato.” Não resistimos a perguntar: e os seres humanos? O nosso comportamento também poderá ser “manipulado” por parasitas? “Existem correlações [da toxoplasmose] com a esquizofrenia”, responde-nos. E também com acidentes de viação ou as taxas de suicídio. Isto poderá corresponder ao mesmo tipo de alteração do comportamento de risco observado nos ratinhos, mas é apenas uma especulação. E mesmo os resultados agora publicados, obtidos em animais de laboratório, precisam de ser confirmados em condições mais naturais, salienta.
Mais: até é possível que as alterações comportamentais produzidas pelo contacto com microorganismos potencialmente patogénicos sejam em muitos casos benéficos, como sugere ainda um outro resultado, muito surpreendente, obtido pelos cientistas. Quando analisaram o comportamento de ratinhos que, apesar de terem sido infectados pelo Toxoplasma, não tinham desenvolvido qualquer sintoma de doença e não tinham cistos no cérebro, descobriram que esses animais também apresentavam alterações comportamentais – só que em sentido totalmente oposto! “Tinham-se tornado hiper-cautelosos”, diz Cristina Afonso. A equipa tenciona agora “descascar o mecanismo de manipulação do comportamento dos ratinhos pelo Toxoplasma. O que é que o parasita faz?”, interroga-se a cientista. “E quais são as respostas do cérebro?”
Fonte: Público
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