quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O lado escuro da Via Láctea

por Leo Blitz

Embora os astrónomos só viessem a perceber lentamente a importância da matéria escura no Universo, para mim, isso aconteceu em um instante. No meu primeiro projeto de pós-doutoramento na University of California em Berkeley, em 1978, medi as velocidades rotacionais das nuvens moleculares gigantes de formação estelar na parte exterior do disco da Via Láctea. Desenvolvi o que era, então, o método mais acurado para determinar aquelas velocidades e sentei-me para analisar os resultados no departamento de astronomia. Dois outros peritos na Via Láctea, Frank Shu e Ivan King, apareceram por acaso. Observaram enquanto eu preenchia as velocidades das nuvens exteriores, e o padrão que vimos deixou claro que a Via Láctea era abundante em matéria escura, especialmente na sua parte mais externa. Sentamo-nos e coçámos a cabeça, imaginando qual poderia ser a natureza da matéria escura, e as ideias que nos ocorreram rapidamente se mostraram erradas.
Esse estudo foi um entre muitos dos anos 70 e 80 que forçaram os astrónomos a concluir que a matéria escura – uma substância misteriosa que não absorve nem emite luz e que se revelava pela sua influência gravitacional – não só existe, mas também é o material dominante na constituição do Universo. Medidas feitas com o satélite WMAP confirmam que a matéria escura dá conta de cinco vezes mais massa que a matéria comum (protões, neutrões, eletrões e assim por diante). O que essa coisa realmente é permanece tão esquiva como sempre foi. É uma medida da nossa ignorância que a hipótese mais conservadora proponha que a matéria escura consista em uma partícula exótica, não detectada até agora nos aceleradores de partículas, predita por teorias sobre a matéria ainda não verificadas. A hipótese mais radical é que a lei gravitacional de Newton, e a relatividade geral de Einstein, estejam erradas ou, no mínimo, exijam modificações desagradáveis.
Qualquer que seja a sua natureza, a matéria escura já está a fornecer pistas para resolver alguns quebra-cabeças relativos a como a Via Láctea apresenta algumas das suas características. Os astrónomos sabem há mais de 50 anos, por exemplo, que as partes exteriores da Galáxia são deformadas como um disco de vinil deixado sobre um aquecedor. Eles não puderam criar um modelo viável da deformação – até que considerassem os efeitos da matéria escura. De modo semelhante, as simulações computacionais da formação galáctica, baseadas nas propriedades da matéria escura, prediziam que a nossa galáxia deveria estar envolta por centenas ou mesmo milhares de pequenas galáxias satélites. Mesmo assim, os observadores viam não mais do que duas dúzias. A discrepância levou a uma interrogação sobre se a matéria escura tinha as propriedades que se imaginava. Mas, nos últimos anos, vários grupos de astrónomos descobriram um tesouro escondido de galáxias-satélites anãs, reduzindo a disparidade. Essas galáxias recém-localizadas não só estão a auxiliar a solucionar mistérios sobre a estrutura galáctica, há muito pendentes, como também podem estar a ensinar algo sobre o inventário cósmico total da matéria.
Um primeiro passo para a compreensão do que a matéria escura nos diz sobre a Via Láctea é fornecer um quadro geral de como a galáxia é organizada. A matéria comum – estrelas e gás – reside em quatro estruturas maiores: um disco fino (que inclui o padrão espiral e a localização do sol), um núcleo denso (que também abriga um buraco negro supermassivo), um bojo alongado conhecido como a barra e um “halo” esferoidal que contém estrelas velhas e aglomerados e que envolve o resto da galáxia. A matéria escura tem um arranjo muito diferente. Embora não possamos vê-la, inferimos onde está a partir das velocidades de rotação das estrelas e do gás. Os seus efeitos gravitacionais sobre a matéria visível sugerem que está distribuída mais ou menos esfericamente e se estende muito além do halo estelar, com uma densidade mais alta no centro que vai diminuindo na proporção do quadrado da distância ao centro. Essa distribuição seria o resultado natural do que os astrónomos chamam de aglomeração hierárquica: a proposição de que, no universo inicial, galáxias menores se juntavam para formar maiores, incluindo a Via Láctea.
Durante anos a fios os astrónomos não puderam obter mais do que este quadro básico da matéria escura como uma esfera gigante e indiferenciada de material não identificado. Nos últimos anos, porém, conseguimos recolher mais detalhes, e a matéria escura revelou-se ainda mais interessante do que suspeitávamos. Várias linhas de evidência sugerem que esse material não é homogeneamente distribuído; mas exibe “encaroçamentos” em larga escala.
Essa disparidade explicaria a existência e o tamanho da deformação galáctica. Quando os astrónomos dizem que a galáxia é deformada, estamos a referir-nos a uma distorção específica na periferia do disco. A distâncias superiores a cerca de 50 mil anos-luz do centro, o disco consiste quase que inteiramente em gás de hidrogénio atómico, com apenas umas poucas estrelas. Mapeado por radiotelescópios, o gás não se assenta no plano da Galáxia; quanto mais se afasta, mais ele se desvia. Até uma distância de aproximadamente 75.000 anos-luz, o disco curvou-se cerca de 7.500 anos-luz para fora do plano.

Fonte: Scientific American

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